Sol na cabeça

Arrifana

Enquanto os pés secos do pó e da areia esfregam os lençóis à procura do canto inexplorado da cama, o sono é interrompido por um breve momento de olho piscado que se pergunta onde está. Ao ouvir o som das ondas a bater na costa, lembro-me que estou em porto seguro.

O acordar é leve, sem máquinas a fazer barulhos modernos indesejados; os pés enfiam-se nos mesmos chinelos que me dão dois passos até à porta da mini-casa de onde a costa vicentina me diz bom dia como quem me estende pão fresco. Enfio os óculos escuros nos olhos ainda entreabertos e sorrio à vida. Tenho trinta anos há dez dias; a liberdade de que me falavam parece, mesmo, existir.

Fico à sombra porque a pele pede descanso, vou ao mercado à hora do pico do sol comprar fruta que sabe a fruta, digo que sim a almoços prolongados que não me deixam dar mergulhos, bebo vinho correndo o risco da sesta que me come o tempo, como os doces que me apetece na mesma proporção das horas de exercício londrino que não me vão apetecer. Vou à praia ao fim do dia porque sabe tão bem, começo o dia a pensar que vou a uma praia nova mas acabo-o na mesma praia de sempre – e não faz mal nenhum.

Não sei o que vamos almoçar nem jantar. Os ingredientes de amanhã arranjam-se mais logo, ainda que o frigorífico esteja mais cheio ao fim de um dia do que o meu londrino alguma vez esteve no quotidiano. O único plano que tenho e sigo é o de encontrar transporte para Lisboa na véspera do avião que me levará de regresso a Londres – com menos quinze graus que aqui, encharcada. Transporte esse reservado no café de esplanada estampada a super bocks, a empregada de sotaque algarvio a vender-nos simpatia em troca de sessenta cêntimos por um café que não se encontra em países ricos, a ventoinha a não dar conta do bafo quente de quase-Agosto, os alemães sentados cá fora, enrugados pela alegria de mandar a ordem à merda e viver enfim à beira-mar.

Não fazia isto há demasiado tempo porque contam-se pelos dedos de uma mão as vezes em que, durante nove anos, passei duas semanas seguidas na minha terra.

Mas principalmente não fazia isto há demasiado tempo porque a cabeça não me deixava. Um dia destes conto-vos porquê, num outro palco. Que já vão sendo horas.

Embora – Sete anos entre o Norte e o Sul

Do silêncio do ano que passou.

embora

Agora disponível nos seguintes espaços:

  • Bertrand
  • Wook
  • Fnac
  • Chiado Editora
  • Livraria Desassossego (Rua de São Bento, nº34, 1200-815 Lisboa)
  • Livraria Nova Iorque (Rua Entrecampos 66-C, 1700-159 Lisboa)
  • Livraria AZ do Livro (Calçada do Duque 11, 1200-155 Lisboa)
  • Livraria Ler, Lda. (Rua Almeida e Sousa, 24, 1350-011 Lisboa)

Sinopse

Foi hesitante que respondeu ao apelo da vida para deixar a sua zona de conforto e conhecer novos lugares, falar outras línguas e fazer amigos de culturas que só conhecia de histórias que não eram suas.

Com então 21 anos, Débora Miranda inscreveu-se para estudar na antiga Alemanha de Leste durante cinco meses. Acabou por ficar um ano. Dali seguiu para a Alemanha ocidental, a Bélgica, a Suíça e o Reino Unido, com passagens pela Turquia, Argentina e Estados Unidos.

Este livro baseia-se nas histórias que Débora partilhou com família e amigos no seu blogue ao longo de mais de sete anos. Num olhar em permanente divisão entre o Norte e o Sul, acompanhamos um percurso de crescimento interior que aprende novas formas de encarar a vida em movimento.

Nesta viagem, ir é reconhecer o valor da luz de Lisboa enquanto se trata o local de destino como casa. Porque ir é também saber regressar.

Um livro para os que vão e vêm – e para os que vão pensando como seria se também fossem.

Obrigada pela paciência!

Si mesma

Totnes

Branco, silêncio, ausência. Adesivo na boca, só saía o que é preciso, a linha na malfadada lista, de malfadada a gratificante. Quem diria que este lugar lhe faria perceber como a lista é precisa, é intrínseca, é parte de si?

Tocam as notas saltitantes, fazem-na saltar também entre o antes e o depois, o ano que passou e os tempos que lembra desde que se conhece, as listas, os saltos, a forma como sempre foi. O mesmo tempo que vai dançando, diz ele. Não lhe tem dado atenção, mas sabe bem como a sua dança a incomodava. Agora percebe-o porquê, mas ainda faz pouco para parar a tendência. Com calma vamos lá.

Partiu em busca da voz que foi perdendo de tanto vomitar nas listas, nos bilhetes, nos sins aos outros, nos ontens e principalmente nos amanhãs.

Totnes Dartington

Ao ir, palpitou-lhe o incerto do que veria. A sensação de ir para um imaginário semi-seguro, esse que inspirou e tranquilizou outros. Que acolheu aflições e com isso permitiu os gritos, os raios entranhados de tão seus. São hoje públicos, que o que é só nosso também pode ser partilhado, interpretado e feito útil – sem que nos entrem na concha.

Trata-nos bem esse verde, amarelo, castanho molhado, pisado e logo despido. Parado no chão puro à espera que o tempo passe, que dance ao som das quatro notas do ano. Mostrou-lhe hoje como pode ser feliz assim. Vagarosa, paciente, tranquila. Mas também lhe lembrou o tempo (vagaroso demais) que lhe dançou entre os dedos durante a juventude entregue a sonhos que não eram só seus. Gostou de perceber aquilo que não quer outra vez, assim como de se aperceber que já faz falta aquilo que tem, tantas vezes com desdém.

Não criaram raízes no mesmo lugar, nem ela o quereria. Sabe de onde veio, por onde passou e, cada vez mais, o que lhe apetece. Por isso mesmo se deixou calar quando outrora teria sorrido, perguntado e agradado. Desta vez o tempo dançou para si. Em sessão privada!

Ainda assim, temo-lo quiçá em comum. O que em duas décadas se entranhava sem dar conta, até se decalcar nas palavras que saíam, tímidas, à medida que o tempo foi dançando. Em comum também temos a capacidade de as trazer à tona. Entre balbucios ele já as grita ao mundo, sem pensar nas consequências. Diz que é feliz, mas que os cinzentos lhe saem nos versos-qual-alívio. Pois entre murmúrios ela há-de também gritar os seus ao mundo – e ficar pronta para os verdes e os amarelos, o ar puro e as lágrimas a bater nos cantos do sorriso.

Para isso, só precisa de dar corda às palavras que agora recomeçaram a sair. De fazê-las dançar no ar, sem pensar como, onde ou em quem vão cair.

Só precisa que confiem que são fiéis. A si mesma.


Barrel House

 

Diletante há uns bons anos

dez anos

Lembras-te, blogosfera? Conhecemo-nos no dia em que começou a Primavera em 2004. Faz hoje dez anos.

Não podia imaginar que aquele primeiro post na blogspot se desenvolveria por uma década.

primeiro post da diletante

“Porquê diletante?”, muitos me perguntam. Aprendi a palavra na adolescência, ao ler Os Maias. Achei que o Carlos da Maia combinava comigo. Querer fazer, dizer que ia fazer, acabar por não concretizar nada.

Escrevi-te palavras muito pessoais. Ainda as escrevo, mas mais protegidas – dizem que crescer nos torna assim. Mas continuo a defender a transparência. Escrevo o que vejo, penso, vivo.

Fui descrevendo os outros a apanhar aviões, suspirando por não ter coragem. “Um dia”.

Quando esse dia chegou, a blogosfera tornou-se no meu diário cá longe. Esta era a única rede social que havia para eu manter os de Casa a par do que por cá vivia. Deixei-me levar pelas palavras de motivação. “Escreves aquilo em que eu penso mas que não digo. Transportas-nos para aí.” Partilhar fazia-me esquecer o pavor de estar longe.

Dez anos depois não deixei de ser diletante. Os braços caídos, a espera pelo amanhã, as ideias no papel. Mas fui lutando contra isso. E as conquistas não teriam tido o mesmo sabor se não as tivesse partilhado com esse lado do ecrã ao longo dos anos.

Hoje é dia de agradecer ao Pedro, que insistiu para que eu dissesse em público o que para aqui vai.

A tal Suíça saudável

O trabalho fez-me viajar outra vez. Não atravessei continentes, mas em menos de duas horas regressei ao lugar que me cumpriu um sonho há pouco (ou muito?) tempo. O bairrismo que me recordara Leipzig, os sons francófonos misturados com a bolha europeia de Bruxelas, os preços ainda mais exorbitantes que os de Londres.

Durante sete semanas, estagiei na Organização Mundial de Saúde com os bolsos esvaziados pelo mestrado londrino – igualmente sonhado -, suguei todas as palestras de hora de almoço a que tive acesso (mal por mal, evitava torturar a carteira nas viagens à cantina), fingi que também eu podia debitar ideias para forçar os doutores a usar o Twitter, e assim, sem que desse conta, infiltrei-me nos meandros  da saúde global.

Martirizei-me por sentir que a experiência soube a pouco, precisamente porque cheguei, desabituada a grandes expectativas, a esfregar as mãos pelo tal sonho. De repente estava eu também a percorrer os corredores vazios da OMS num Verão quente, onde os funcionários têm também as suas frustrações sobre o sistema, as hierarquias e uma estrutura monstruosa; onde os médicos que quis entrevistar sobre mutilação genital feminina estavam à distância de um click no directório interno; onde os estagiários tinham os bolsos tão vazios como os meus – excepto os norte-americanos, ansiosos por visitar um país europeu diferente a cada fim-de-semana -, os fatos desengomados, as manhãs de sono, o bonjour automático aos seguranças que nos revistavam as malas a cada manhã.

A Organização Mundial de Saúde tornara-se num prédio de escritórios igual aos outros. Com a diferença de que ali todos pareciam ter a consciência de ser, de facto,uma referência mundial, e de terem a responsabilidade de fazer bem. Que deles depende, quer se queira quer não, grande parte da informação e da qualidade de saúde do mundo.

Pouco mais de dois anos depois de ter embarcado neste mesmo aeroporto, de regresso à minha Lisboa de Verão, passei entretanto por dois escritórios londrinos e escrevi sobre cancro do colo do útero, demência e malária. Aterro agora de novo na capital mundial da saúde para me juntar a um grupo de trabalho especializado em advocacia sobre malária, financiada pela Fundação Bill & Melinda Gates.

Trouxeram 50 pessoas de São Francisco ao Cambodja para partilhar histórias de como implementaram as suas ideias pesquisadas. Enquanto bocejo as oito horas que dormi no hotel ali ao lado, chegam homens saídos do avião, acabados de atravessar o Atlântico desde a ONU em Manhattan, com um café-à-emporter na mão e o cérebro preparado para fazer uma apresentação.

Criticam-se as conversas feitas em jantares de luxo e mesas polidas em Genebra, Londres e Nova Iorque, sobre a vida de pessoas que nunca viram tal realidade. Felizmente, aqueles que não conhecem o terreno são poucos – ou talvez seja mesmo só eu.

Mas aos poucos vamos lá. Um passo de cada vez. Para já, confirmei que Genebra é fascinante – de visita.

E que se trabalha com vista para os Alpes.

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Tenho um coração que ferve

Dizem que é de ter nascido naquele dia de Julho – que “os caranguejos têm as emoções à flor da pele”. Caramba, tudo me sensibiliza. A sensação de que não estou a aproveitar bem o tempo, o meu tempo, no sítio onde escolhi passá-lo por agora. As gargalhadas solitárias em reacção ao que as galinhas me dizem através de ecrãs, a confirmar que a amizade é mesmo além-fronteiras. O vídeo que me alivia – há amor verdadeiro sim – e as mensagens para Casa a confirmar-me a saudade diária do meu espaço de sempre. Decidi vir e andar por aqui, com pés desnorteados e bem assentes no chão. As palavras que leio, escritas para mim ou para os outros, ditas em grito ou em silêncio, atacam-me como seda na pele ou facas espetadas. Acho que há mais borboletas dentro de mim do que dentro dos outros, ou dos dos outros signos. Um pouco de tudo me faz sorrir, chorar, apoquentar. Olho e escrevo, se não escrevo fico nervosa, não consigo dizer que não quero saber, porque quero. E como sabemos – caranguejozinhos de pés atrás, que trabalho me dás! – como até para julgarmos os outros somos hesitantes. Até me (nos?) chamam moralista, mas que culpa tenho eu destes valores a efervescer-me da alma, só porque há crença de que eles podem, sim, vingar? Continuo determinadamente firme a esta ilha que corre e não deixa parar nem pensar, só deixa correr e clicar, sentar em carruagens cheias onde todos olham os seus ecrãs. Menos eu e o idoso, que de olhos tristes segura o chapéu de chuva com as suas mãos diabéticas e a minha certeza de que planeou aquele itinerário dias antes, atento às estações, para ir ter com os filhos, netos, ou ninguém. Ferve-me outra vez a vontade de esquecer a estúpida da minha agenda cheia de compromissos egoístas, de parar para conversar, tornar as suas habituais paredes num ouvido humano. Mas já de raízes na metrópole desvio o olhar para o casal jovem que ao lado se distancia daquela triste realidade. São outras gerações. Tenho pena de pertencer à de hoje – se ainda por cima vivo na ilha onde ela se apressa, vanguardista, pronta a ditar ao resto do mundo no que ele se irá tornar – seco, frio, sem fervura. Então olho todos os olhos à minha volta, bem nos olhos – e entre fervuras sorrio, ignoro, ou franzo o sobrolho triste enquanto caminho. Regresso ao ecrã que me põe mais perto dos que são meus, dos que estão em Casa e falam a minha língua, e dos que estão por aí espalhados, noutras línguas, presos às memórias na esperança de uma visita. No meu isolamento grito a fúria alegre de quem adora o que faz e põe a mão no ombro alheio. No mesmo isolamento atacam-me as dúvidas de tempo que se esvai entre os dedos sem promessa de retorno, e ai que faço eu aqui. Fervem-me as estações do ano, fervo de emoções quando outros as mostram, fervo de raiva quando os outros provam não as ter, fervo de tristeza quando se me esvai a esperança de que haja gente genuína por aí. Gente que não se julgue pelas palavras tortas ditas por ecrãs, por bonecos que querem imitar as nossas caras e espelhar as nossas emoções. Mas felizmente os ecrãs ainda não choram, e fica do lado de cá, individualizado e sozinho, a emoção colada à almofada. Para no dia seguinte seguir-se rotina, a luz do dia a dizer que já está tudo bem, e automaticamente a falta de tempo para parar, pensar, ponderar e planear aquilo e o lugar em que estamos bem. Falta tempo para sentir. Arranho-me de culpa e logo a seguir me tranquilizo, que afinal eu sou grata por sentir todos os dias, a toda a hora.

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Ano ante ano

Sou de meses; e no último do ano ė-me costume olhar séria pela janela e começar a rebobinar.

Começou na Argentina, choque térmico de 50 graus que obrigava à relativização. Por vezes só precisamos de mudar de latitude – ou de hemisfério – para pensar sob outra perspectiva. Talvez tenha passado de vez para o lado dos nórdicos, que dividem a vida entre o trabalho no frio e as férias no calor. Mas que não se trabalhe só para poder viajar, que trabalhar naquilo com que se sonhou – saúde – e ainda por cima por uma boa causa, não dá remorso.

Há quem bata o pé e fuja do frio urbano. Quando o laço de sangue assim o fez, fugiu-se-me o tapete. “Então também vou,” pensei, mas a capital europeia não acolheu. Decidi ficar. O verão fez-se entre dias de sol inesperadamente repetidos, parques e churrascos e alguns banhos. Quando a rotina melhora, também muda a perspectiva. (A tal latitude, ainda que urbana.)

Aviões, muitos e bons. Surpreendentemente, só uma mudança de casa. O tempo britânico ultrapassou o tempo alemão em jeito de raiva, não é possível, que aquele sim será para sempre o meu segundo país.

Isto, porque deixar arrastar o tempo dá a inquietante comichão de que algo nos passa ao lado. Como diz o outro, a vida é aquilo que acontece enquanto estamos a fazer planos. Mas não adianta remar contra a maré; nascemos assim e pois continua a essência. Promessa de não nos martirizarmos mais por não fazermos o que poderíamos, ou de fazermos sem necessidade. Enquanto alguma coisa nos acontece em burburinho aqui ao lado, ou não. Talvez só incomode porque só estamos bem onde não estamos.

O remorso de percorrer ecrãs enquanto se deve escrever neles, aos antigos, aos de sempre, aos de longe. O mundo globalizado fecha-se nesses ecrãs, espelhos estúpidos de uma realidade que passa a existir por interpretações – sem que, de facto, exista.

Percorremos mentalmente o ano tal como percorremos o que sentimos, o que fazemos e sabemos estar errado, o que queremos mudar e teima em não passar à acção. Tornamo-nos escravos diletantes dos nossos próprios planos. E massacro-me sempre que me apercebo disso.

Cores para 2014, por gentileza. Azul de céu limpo, azul de mar, e tons de amarelo de terras quentes. Seja em pausa da tal causa, ou à procura de uma nova.

Maria londrina nova-iorquina

Vi Nova Iorque com as suas imponentes torres gémeas, que me apeteceu abraçar de anorak em puberdade. Senti-as amigas mais velhas a dizer-me que fazia bem em querer escrever para a vida (ou qualquer coisa assim).

Vi Nova Iorque sem torres, um Ground Zero de chão levantado e com ranhuras, qual terramoto provocado por uma dúzia de homens loucos. Elevavam-se as bandeiras orgulhosas do costume.

À terceira, vi Nova Iorque meia recuperada. Uma torre que dizem ser mais alta – ou com uma antena a fazer batota – protege agora o memorial das torres de outrora, uma água ensurdecedora a cair sobre a pedra escura e imponente onde se lêem embutidos os nomes das quase três mil pessoas que ali se evaporaram. A torre é mais magra, e é só uma.
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Dezasseis anos depois Nova Iorque está igual na sua essência, mas é-me hoje tão diferente. Mais próxima, mais familiar, mais alcançável. Entre visitas turísticas bebo um chá de menta fresca com uma amiga da faculdade que não via há uns oito anos. Conversam-se histórias além-fronteiras, partilham-se suspiros do que fazer da vida e das sensações ambíguas nas idas a Casa.

Se viver aqui sempre foi o meu sonho, hoje posso dar-me ao luxo de encontrar defeitos e impôr condições. Acima de tudo, sorrio ao surpreender-me com a revelação que me entra nos olhos: Nova Iorque à minha frente tem tanto da minha Maria Londres.

O World Trade Center são os arredores do Gherkin, e a nova Freedom Tower cheira tão a nova como o Shard. Gente de negócios escapa à hora de almoço para se sentar nuns degraus de escada a comer qualquer coisa: em Nova Iorque, uma embalagem de plástico com um petisco mexicano, talheres de plástico e cinquenta guardanapos, transportados num saco de papel e noutro de plástico. Em Londres, umas horas antes, viam-se umas Mediterranean sandwich cujos restos se limpam a chupar os dedos.

Os quiosques de hot dog a cada esquina são os pubs com nomes alusivos à monarquia e anatomia (Queen’s Head, King’s Arms e afins), o Central Park é o Hyde Park, a Estátua da Liberdade é a Rainha Isabel, quem corre junto ao Hudson também se passeia em Canary Wharf pelo Tamisa fora. Times Square tem mais luz que Picadilly Circus, mas também se deixa engolir entre teatros e musicais, cheios dos mesmos turistas espanhóis e italianos e brasileiros que achávamos que não tinham dinheiro.

Cidades e países de gentes gordas, mas Manhattan estica-se para cima e Londres estica-se para os lados, cidades estruturadas entre o mesmo norte dos bonitos, o faroeste dos conservadores, o sul dos latinos e o leste dos paquistaneses e indianos e outros orientais; os ricos de Manhattan dão ideia de ali ficar, que apesar da correria quer-se conforto no vigésimo andar ou above,enquanto os londrinos encontram sossego nos arredores e se deixam levar de comboio até ao escritório, duas horas por dia, dez por semana, 40 por mês, 520 por ano. Essa tal de commute solitária, acompanhada pelos mesmos jornais gratuitos em extinção, substituídos por tablets e iSemelhantes, gente que se olha pela testa porque os olhos fixam-se no colo, os dedos comandam ecrãs e fios brancos.

Os milhares de táxis amarelos à superfície de Nova Iorque são as milhares de pernas que se empurram no arco íris do Tube londrino – Central, Picadilly, Hammersmith, Northern, District e mind the gap‘s. O subway nova iorquino é mais sujo e mais pobre, o londrino mais natural e europeu.

Greenwich village encanta pelo ambiente jovem e a vida nocturna, mas travo a inveja para me lembrar que tenho tudo isso em Shoreditch e em Islington, com mais amigos e cantos conhecidos. Perder por perder, perco-me em todo o lado.

Tanto Nova Iorque como Londres conhecem bem o frio, embora o sol não brilhe em Londres nem metade dos dias que brilha em Nova Iorque. Mas é-se feliz em ambas as metrópoles. Basta conseguir ultrapassar os primeiros meses, o tal pesadelo de quem tem de se instalar, transporte, papéis, procurar casa, procurar casa, procurar casa. Muito tempo depois somos enfim (ou não) cidadãos cansados e prontos a encarar esses monstros de frente, rápidos e frenéticos.

Pela primeira vez, acho que se não vier a morar em Nova Iorque não faz mal. Tenho a Maria Londres, a menos de três horas de Casa.
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África

Histórias de família em era de guerra colonial em Moçambique. Histórias de família recém-criada, embarcada para Cabo Verde ao arranque dos anos 80. Histórias de família contadas à mesa ao longo de vinte e muitos anos. Ao fim de vinte e muitos anos, fui eu pisar solo africano pela primeira vez. Vinte e muitos anos atrasada.

Há quatro meses comecei a trabalhar com um grupo de investigação em malária, com sede na Escola de Londres de Higiene e Medicina Tropical e financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates. Um consórcio que inclui clínicos, economistas de saúde, antropologistas e outros especialistas espalhados pelo mundo fora – de Atlanta a Sydney, passando pela Suécia e pelo Uganda. Cabe-me fazer chegar os resultados do seu trabalho, iniciado em 2007, àqueles que podem (ou devem) pô-lo em prática. Resumi 25 estudos em 10 países, maioritariamente dedicados a procurar soluções para o problema de diagnóstico, já que muitos pacientes infectados não têm acesso a tratamento anti-palúdico, e muitos recebem-no sem na verdade terem malária. Os profissionais de saúde muitas vezes prescrevem tratamento contra a malária simplesmente porque o paciente tem febre. Embora existam testes de diagnóstico rápido, que são fiáveis e não necessitam de pessoal qualificado ou de electricidade, muitos clínicos ignoram o seu resultado. E assim começa um ciclo vicioso: tomar medicamentos anti-palúdicos quando o corpo não precisa deles leva ao aumento do risco de resistência, que em última instância pode pôr em causa os esforços que têm sido feitos a nível global na última década para controlar a doença.

Este trabalho levou-me à conferência MIM (Multilaterial Initiative on Malaria), considerado o maior encontro mundial de especialistas na doença. Com livros, panfletos, cartões de visita, painéis, canetas e pens às costas, rumei ao Dubai em escala. Desse sítio estranho – a que chamam o ponto de encontro entre o Este e o Oeste – vi apenas uns arranha-céus longínquos rodeados de amarelo-claro do deserto e um azul escuro de madrugada a adivinhar calores insultuosos. Eram cinco da manhã e estavam 28ºC. Senti-me em transição.

No caminho rumo a Sul, o piloto anunciou-nos as coordenadas sobre a Etiópia, a Somália e o chamado Corno de África. Da janela do avião estremeci num turbilhão de sensações – ora peixe fora de água ora criança à espera do Pai Natal.

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Passaram-se duas semanas de muito trabalho e pouco – mas bem aproveitado – lazer. Vi pouco, mas percebi muito. Como me dizia ontem uma amiga dos Camarões, “é preciso lembrarmo-nos que África não é só miséria”; e eu tive o privilégio de viver uma ínfima parte dos cheiros, das cores, da temperatura, dos ingredientes, dos animais, das paisagens, do pôr-do-sol e dos sorrisos.

Acima de tudo, vivi duas semanas rodeada de gente inspiradora, gente apaixonada pelo que faz e gente que acredita na causa pela qual trabalha.

Regressei da África do Sul a explodir de orgulho pela minha conquista: apercebi-me ser, de facto, uma profissional de comunicação especializada em saúde, agora em contacto permanente com profissionais de saúde que vivem entre os corredores da OMS, as ruas empoeiradas de investigação no terreno e as universidades mais prestigiadas do mundo. Senti-me um íman a sugar informação de quem tem toneladas de conhecimento para me ensinar.

No regresso, voltei a sobrevoar o Corno de África. E voltei a estremecer ao aperceber-me da matemática do tempo: quando estava a ter lugar a última conferência MIM, no Quénia em 2009, eu estava nos estúdios da Deutsche Welle a apresentar notícias em directo. Escritas durante a noite. Postas por ordem consoante o grau de relevância. As notícias dos países lusófonos passavam para o topo da lista; é o nosso público-alvo. Por isso, os sequestros de piratas somalis a navios internacionais no Corno de África eram notícia, mas raramente subiam na lista.

Hoje, de cabelo despenteado e a roupa descoordenada que consegui encontrar numa das 50 malas que agora se instalam no quarto da minha irmã, saí à rua sozinha para uma sessão de cinema, em fim de tarde de domingo londrino, escuro e chuvoso. Disseram-me que “Captain Phillips” retratava a história real de um ataque pirata somali.

As mãos que ainda tremem não querem aqui resumir o filme, mas tinham de vir escrever, de uma vez por todas, como África se tem entranhado em mim nos últimos meses. Um filme que adivinha críticas pelo tom heróico de Hollywood, mas que conta a história de jovens que nada mais têm a perder na vida – do que a própria vida. Recordo-me de balbuciar uma e outra notícia sobre uma das piores crises de fome que a Somália atravessou.

O turbilhão de sensações que andava a fervilhar dentro de mim estava prestes a culminar. Era óbvio que o Captain Phillips ia sobreviver e regressar são e salvo para o conforto da sua família. O que não era óbvio era que fossem filmar o Captain Phillips, em estado de choque, a ser examinado pela equipa médica da marinha norte-americana. Entregue aos conhecimentos que a investigação científica proporcionou ao longo dos anos. E a mostrar-nos o lado humano de um trauma digno de guerra.

Já não ando a dar notícias aos microfones. O curso de primeiros socorros da Cruz Vermelha também não fez de mim uma profissional de saúde. Não preciso de estatísticas para saber que fui a única pessoa na conferência MIM que estava ali em África pela primeira vez. As histórias da minha Família em África nunca serão minhas. No fundo, não sei nada sobre África.

Regresso a casa da minha irmã; as lágrimas confundem-se com a chuva. Lembro-me que posso hoje comunicar sobre a ciência que se faz para combater problemas de saúde no mundo. Mas isso não me faz sentir menos pequenina.

 

Sexta-feira

Quem vem a Londres só por uns dias não se apercebe do que a sexta-feira tem de londrino. Os chefes – que os turistas não têm – apressam-se a despachar trabalho, olham impacientes para o relógio, fazem telefonemas no escritório de já-vou, trocam ideias sobre a escolha do pub para esta semana; se for uma ocasião especial, já estará marcado há uns meses.

À sexta-feira à tarde, a população activa de Londres atira-se para bares tradicionalmente britânicos, de madeira escura, de tapetes verde-escuros, de luzes aconchegantes. Mesas partilham-se com desconhecidos, homens cambaleantes de fato entornam cerveja, as inglesas de cabelo loiro-esparguete e vestidos curtos às flores pisam-nos sem querer e sorriem para trás de olhos revirados um hiper bem-educado sorray. O cliente do pub é uma pessoa feliz.

Quem por cá está de passagem e pára num pub à sexta-feira não se apercebe que a maioria dos grupos que ali convivem são de equipas de trabalho. Colegas que das nove às cinco se e-mailam profissionalmente, e das cinco à meia-noite partilham piadas e rotinas de uma vida pessoal. Que em Londres não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar uma família emprestada.

Quando não vamos ao pub com os colegas, vamos com os amigos. Fala-se de viagens, de onde vives agora, como está a correr o trabalho, e prometemos todos ver-nos mais vezes. Continuar a ler