África

Histórias de família em era de guerra colonial em Moçambique. Histórias de família recém-criada, embarcada para Cabo Verde ao arranque dos anos 80. Histórias de família contadas à mesa ao longo de vinte e muitos anos. Ao fim de vinte e muitos anos, fui eu pisar solo africano pela primeira vez. Vinte e muitos anos atrasada.

Há quatro meses comecei a trabalhar com um grupo de investigação em malária, com sede na Escola de Londres de Higiene e Medicina Tropical e financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates. Um consórcio que inclui clínicos, economistas de saúde, antropologistas e outros especialistas espalhados pelo mundo fora – de Atlanta a Sydney, passando pela Suécia e pelo Uganda. Cabe-me fazer chegar os resultados do seu trabalho, iniciado em 2007, àqueles que podem (ou devem) pô-lo em prática. Resumi 25 estudos em 10 países, maioritariamente dedicados a procurar soluções para o problema de diagnóstico, já que muitos pacientes infectados não têm acesso a tratamento anti-palúdico, e muitos recebem-no sem na verdade terem malária. Os profissionais de saúde muitas vezes prescrevem tratamento contra a malária simplesmente porque o paciente tem febre. Embora existam testes de diagnóstico rápido, que são fiáveis e não necessitam de pessoal qualificado ou de electricidade, muitos clínicos ignoram o seu resultado. E assim começa um ciclo vicioso: tomar medicamentos anti-palúdicos quando o corpo não precisa deles leva ao aumento do risco de resistência, que em última instância pode pôr em causa os esforços que têm sido feitos a nível global na última década para controlar a doença.

Este trabalho levou-me à conferência MIM (Multilaterial Initiative on Malaria), considerado o maior encontro mundial de especialistas na doença. Com livros, panfletos, cartões de visita, painéis, canetas e pens às costas, rumei ao Dubai em escala. Desse sítio estranho – a que chamam o ponto de encontro entre o Este e o Oeste – vi apenas uns arranha-céus longínquos rodeados de amarelo-claro do deserto e um azul escuro de madrugada a adivinhar calores insultuosos. Eram cinco da manhã e estavam 28ºC. Senti-me em transição.

No caminho rumo a Sul, o piloto anunciou-nos as coordenadas sobre a Etiópia, a Somália e o chamado Corno de África. Da janela do avião estremeci num turbilhão de sensações – ora peixe fora de água ora criança à espera do Pai Natal.

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Passaram-se duas semanas de muito trabalho e pouco – mas bem aproveitado – lazer. Vi pouco, mas percebi muito. Como me dizia ontem uma amiga dos Camarões, “é preciso lembrarmo-nos que África não é só miséria”; e eu tive o privilégio de viver uma ínfima parte dos cheiros, das cores, da temperatura, dos ingredientes, dos animais, das paisagens, do pôr-do-sol e dos sorrisos.

Acima de tudo, vivi duas semanas rodeada de gente inspiradora, gente apaixonada pelo que faz e gente que acredita na causa pela qual trabalha.

Regressei da África do Sul a explodir de orgulho pela minha conquista: apercebi-me ser, de facto, uma profissional de comunicação especializada em saúde, agora em contacto permanente com profissionais de saúde que vivem entre os corredores da OMS, as ruas empoeiradas de investigação no terreno e as universidades mais prestigiadas do mundo. Senti-me um íman a sugar informação de quem tem toneladas de conhecimento para me ensinar.

No regresso, voltei a sobrevoar o Corno de África. E voltei a estremecer ao aperceber-me da matemática do tempo: quando estava a ter lugar a última conferência MIM, no Quénia em 2009, eu estava nos estúdios da Deutsche Welle a apresentar notícias em directo. Escritas durante a noite. Postas por ordem consoante o grau de relevância. As notícias dos países lusófonos passavam para o topo da lista; é o nosso público-alvo. Por isso, os sequestros de piratas somalis a navios internacionais no Corno de África eram notícia, mas raramente subiam na lista.

Hoje, de cabelo despenteado e a roupa descoordenada que consegui encontrar numa das 50 malas que agora se instalam no quarto da minha irmã, saí à rua sozinha para uma sessão de cinema, em fim de tarde de domingo londrino, escuro e chuvoso. Disseram-me que “Captain Phillips” retratava a história real de um ataque pirata somali.

As mãos que ainda tremem não querem aqui resumir o filme, mas tinham de vir escrever, de uma vez por todas, como África se tem entranhado em mim nos últimos meses. Um filme que adivinha críticas pelo tom heróico de Hollywood, mas que conta a história de jovens que nada mais têm a perder na vida – do que a própria vida. Recordo-me de balbuciar uma e outra notícia sobre uma das piores crises de fome que a Somália atravessou.

O turbilhão de sensações que andava a fervilhar dentro de mim estava prestes a culminar. Era óbvio que o Captain Phillips ia sobreviver e regressar são e salvo para o conforto da sua família. O que não era óbvio era que fossem filmar o Captain Phillips, em estado de choque, a ser examinado pela equipa médica da marinha norte-americana. Entregue aos conhecimentos que a investigação científica proporcionou ao longo dos anos. E a mostrar-nos o lado humano de um trauma digno de guerra.

Já não ando a dar notícias aos microfones. O curso de primeiros socorros da Cruz Vermelha também não fez de mim uma profissional de saúde. Não preciso de estatísticas para saber que fui a única pessoa na conferência MIM que estava ali em África pela primeira vez. As histórias da minha Família em África nunca serão minhas. No fundo, não sei nada sobre África.

Regresso a casa da minha irmã; as lágrimas confundem-se com a chuva. Lembro-me que posso hoje comunicar sobre a ciência que se faz para combater problemas de saúde no mundo. Mas isso não me faz sentir menos pequenina.

 

Dia de Camões: a Guerra há quatro décadas

“No regresso, a 10 de Junho, há uma nova vida promissora. Exactamente 43 anos depois da minha chegada a Lourenço Marques, onde me deram uma espingarda com 100 balas verdadeiras. Consegui voltar para ser feliz e ter o meu Tano.”

Disse-me o meu Pai há uns dias.

Que eu ouse sequer um dia queixar-me da vida que tenho.