Vi Nova Iorque com as suas imponentes torres gémeas, que me apeteceu abraçar de anorak em puberdade. Senti-as amigas mais velhas a dizer-me que fazia bem em querer escrever para a vida (ou qualquer coisa assim).
Vi Nova Iorque sem torres, um Ground Zero de chão levantado e com ranhuras, qual terramoto provocado por uma dúzia de homens loucos. Elevavam-se as bandeiras orgulhosas do costume.
À terceira, vi Nova Iorque meia recuperada. Uma torre que dizem ser mais alta – ou com uma antena a fazer batota – protege agora o memorial das torres de outrora, uma água ensurdecedora a cair sobre a pedra escura e imponente onde se lêem embutidos os nomes das quase três mil pessoas que ali se evaporaram. A torre é mais magra, e é só uma.
Dezasseis anos depois Nova Iorque está igual na sua essência, mas é-me hoje tão diferente. Mais próxima, mais familiar, mais alcançável. Entre visitas turísticas bebo um chá de menta fresca com uma amiga da faculdade que não via há uns oito anos. Conversam-se histórias além-fronteiras, partilham-se suspiros do que fazer da vida e das sensações ambíguas nas idas a Casa.
Se viver aqui sempre foi o meu sonho, hoje posso dar-me ao luxo de encontrar defeitos e impôr condições. Acima de tudo, sorrio ao surpreender-me com a revelação que me entra nos olhos: Nova Iorque à minha frente tem tanto da minha Maria Londres.
O World Trade Center são os arredores do Gherkin, e a nova Freedom Tower cheira tão a nova como o Shard. Gente de negócios escapa à hora de almoço para se sentar nuns degraus de escada a comer qualquer coisa: em Nova Iorque, uma embalagem de plástico com um petisco mexicano, talheres de plástico e cinquenta guardanapos, transportados num saco de papel e noutro de plástico. Em Londres, umas horas antes, viam-se umas Mediterranean sandwich cujos restos se limpam a chupar os dedos.
Os quiosques de hot dog a cada esquina são os pubs com nomes alusivos à monarquia e anatomia (Queen’s Head, King’s Arms e afins), o Central Park é o Hyde Park, a Estátua da Liberdade é a Rainha Isabel, quem corre junto ao Hudson também se passeia em Canary Wharf pelo Tamisa fora. Times Square tem mais luz que Picadilly Circus, mas também se deixa engolir entre teatros e musicais, cheios dos mesmos turistas espanhóis e italianos e brasileiros que achávamos que não tinham dinheiro.
Cidades e países de gentes gordas, mas Manhattan estica-se para cima e Londres estica-se para os lados, cidades estruturadas entre o mesmo norte dos bonitos, o faroeste dos conservadores, o sul dos latinos e o leste dos paquistaneses e indianos e outros orientais; os ricos de Manhattan dão ideia de ali ficar, que apesar da correria quer-se conforto no vigésimo andar ou above,enquanto os londrinos encontram sossego nos arredores e se deixam levar de comboio até ao escritório, duas horas por dia, dez por semana, 40 por mês, 520 por ano. Essa tal de commute solitária, acompanhada pelos mesmos jornais gratuitos em extinção, substituídos por tablets e iSemelhantes, gente que se olha pela testa porque os olhos fixam-se no colo, os dedos comandam ecrãs e fios brancos.
Os milhares de táxis amarelos à superfície de Nova Iorque são as milhares de pernas que se empurram no arco íris do Tube londrino – Central, Picadilly, Hammersmith, Northern, District e mind the gap‘s. O subway nova iorquino é mais sujo e mais pobre, o londrino mais natural e europeu.
Greenwich village encanta pelo ambiente jovem e a vida nocturna, mas travo a inveja para me lembrar que tenho tudo isso em Shoreditch e em Islington, com mais amigos e cantos conhecidos. Perder por perder, perco-me em todo o lado.
Tanto Nova Iorque como Londres conhecem bem o frio, embora o sol não brilhe em Londres nem metade dos dias que brilha em Nova Iorque. Mas é-se feliz em ambas as metrópoles. Basta conseguir ultrapassar os primeiros meses, o tal pesadelo de quem tem de se instalar, transporte, papéis, procurar casa, procurar casa, procurar casa. Muito tempo depois somos enfim (ou não) cidadãos cansados e prontos a encarar esses monstros de frente, rápidos e frenéticos.
Pela primeira vez, acho que se não vier a morar em Nova Iorque não faz mal. Tenho a Maria Londres, a menos de três horas de Casa.
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